quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Caso Nardoni e o direito de não auto-incriminação

Da autodefesa (que integra a ampla defesa) também faz parte o privilégio ou princípio da não auto-incriminação (nemo tenetur se detegere), que compreende: (1) o direito ao silêncio, (2) o direito de não declarar contra si mesmo, (3) o direito de não confessar, (4) o direito de declarar o inverídico, sem prejudicar terceiros, (5) o direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa (ou que lhe prejudique) no âmbito probatório e (6) o direito de não produzir nenhuma prova que envolva o seu corpo.

Como se vê, o acusado tem todo direito de não falar nada (direito ao silêncio); se falar, conta com o direito de nada dizer contra si mesmo; mesmo dizendo algo contra si, tem o direito de não confessar. A confissão, por sinal, só constitui prova válida quando for espontânea.

"O Estado – que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem (RTJ 176/805-806) – também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512)" (cf. STF, HC 96.219-MC-SP, rel. Min. Celso de Mello).

Do direito de não auto-incriminação faz parte, como se vê, o direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa (ou que lhe prejudique) no âmbito probatório: Exemplo: direito de não participar da reconstituição do crime (reprodução simulada do delito), direito de não ceder material gráfico para exame grafotécnico (STF, rel. Ilmar Galvão, Informativo STF 122, p.1) etc.

Com base no Pacto de San José e na Constituição os Ministros da 2ª Turma do Supremo concederam o Habeas Corpus 83.096 em favor de um acusado que não queria ser submetido a teste de perícia de voz. Ele foi denunciado pela prática de associação para o tráfico de drogas, após escuta telefônica. A defesa alegou ofensa ao artigo 8º, inciso II, alínea "g", do Pacto San José, segundo o qual ninguém será obrigado a depor, fazer prova contra si mesmo ou se auto-incriminar. Ao julgar o caso, a Turma acompanhou o voto da relatora da matéria, Ministra Ellen Gracie, para assegurar ao paciente o exercício do direito ao silêncio (sic), ou seja, direito de não auto-incriminação.

Nos atos que não exigem um comportamento ativo do agente, sua presença (seu comparecimento) é obrigatória (o). Exemplo: reconhecimento pessoal.

No famoso Caso Nardoni (os pais são acusados de terem matado a filha Isabela) foi discutida (pelo STJ) a amplitude do direito de não auto-incriminação (STJ, Quinta Turma, HC 137206, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 01.12.09). A Quinta Turma rejeitou, por unanimidade, habeas corpus impetrado pela defesa em favor de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Na ordem de habeas corpus impetrada a defesa pedia o trancamento da ação penal no que diz respeito ao delito de fraude processual, que também foi imputado ao casal. De acordo com a acusação, teria o casal limpado o local do crime logo após a morte da vítima.

O delito de fraude processual está previsto no art. 347 do CP, nestes termos: "Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perigo: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro".

O pedido de habeas corpus, pelo que se noticiou, tinha como fundamento a Constituição Federal, que asseguraria que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. O casal não poderia ter sido acusado também de ter inovado o local do delito. "Eles não poderiam ser algozes de si próprios, no sentido de tentar deixar provas que os auto-acusassem", ponderou o apelo da defesa no habeas corpus.

Para o relator do habeas corpus no STJ, Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, o direito constitucional que garante à pessoa não se auto-incriminar "não abrange a possibilidade de os acusados alterarem a cena do crime, levando peritos e policiais a cometerem erro de avaliação".

Uma coisa, portanto, é o direito de não praticar nenhum ato que comprometa (ou que prejudique) o acusado. Outra bem distinta é inovar (alterar) o local dos fatos (para, eventualmente, não ser incriminado). O que o princípio da não auto-incriminação protege é uma atividade negativa (ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo). O que se pediu no habeas corpus foi a desconsideração de um ato positivo (inovação do local). Uma coisa é o direito de não ceder sangue para o efeito de sua própria incriminação. Outra bem distinta consiste em limpar o sangue que já faz parte do corpo de delito (vestígios que se encontram no local do delito), com o intuito de induzir em erro o juiz ou o perito. A distinção é importante, porque uma coisa é o direito de se não auto-incriminar, outra diferente é o não-direito de alterar as provas do delito.

Andou bem a Quinta Turma do STJ em se enveredar pela seara dessas distinções. O Direito de não auto-incriminação continua sendo construído (diariamente vem sendo construído pela jurisprudência). Com a decisão ora comentada um ponto mais ficou elucidado. Com acerto, na nossa opinião.


GOMES, Luiz Flávio. Caso Nardoni e o direito de não auto-incriminação. Disponível em http://www.lfg.com.br - 10 dezembro. 2009.

Vários réus, advogado comum e defesas conflitantes: nulidade

A ampla defesa (constitucionalmente assegurada – CF, art. 5.º, LV), no devido processo criminal, compreende – tal como reconhece a communis opinio doctorum –, a autodefesa e a defesa técnica.

Esses dois aspectos fazem parte da possibilidade de se defender. Dispõe, a propósito, o art. 261 do CPP que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor. Complementa o art. 263: Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvando o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação.

A diferença essencial entre autodefesa e defesa técnica é a seguinte: a primeira é dispensável; a segunda é imprescindível. A possibilidade de se defender é complementada pela possibilidade de recorrer (CF, art. 5.º, LV). Ambas (possibilidade de se defender e possibilidade de recorrer), paralelamente à autodefesa e à defesa técnica, revelam o conteúdo essencial (o núcleo duro) da ampla defesa.

Defesa ampla é a mais abrangente possível, a mais plena possível. Não pode haver cerceamento infundado, sob pena de nulidade do processo. Segundo a súmula 523 do STF: No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu. Notando o juiz que a defesa vem sendo absolutamente deficiente, o correto é tomar a iniciativa de reputar o acusado indefeso, intimando-o para constituir um outro defensor (ou nomeando defensor, em caso de defensor dativo ou se o acusado não o constitui).

Defesa técnica

Advogado e estagiário. A defesa técnica, que é imprescindível no processo penal, tem que ser exercida por quem tem habilitação técnica (advogado devidamente inscrito na OAB). Estagiário não pode incumbir-se dela durante o processo. Pode o estagiário praticar alguns atos, mas não cuidar da defesa do acusado. E se o estagiário funcionou em todo processo e conseguiu absolvição do réu com trânsito em julgado? Houve nulidade, mas nada pode ser feito. Prevalece a absolvição, porque não existe revisão criminal pro societate.

Advogado único para dois réus com defesas conflitantes: um único advogado não pode defender dois ou mais réus, com defesas conflitantes, sob pena de nulidade. Se as defesas (versões) apresentadas pelos réus são conflitantes, eles não podem ter advogado comum, visto que, nesse caso, o prejuízo (para um deles) está mais do que evidenciado. A garantia da ampla defesa não pode ser maculada em virtude da presença de um único advogado para todos os réus (com defesas conflitantes). O caso é de nulidade do processo, em virtude da ausência de defesa técnica (que é obrigatória).

Elucidativa, nesse sentido, a seguinte decisão do STJ: "Ressalta o Min. Relator que, no caso dos autos, os dois réus foram patrocinados pelo mesmo advogado, mas, dado que as versões apresentadas por eles são divergentes, não poderia ter o causídico continuado como defensor comum. Explica que a condenação a 12 anos de reclusão é o próprio prejuízo pelo fato de o paciente ter sido defendido pelo mesmo advogado. Também observa haver deficiência técnica da defesa. Assim, concluiu o Min. Relator, no que foi acompanhado pela Turma, que é inviável a análise das questões constantes da inicial não levadas à apreciação do TJ, em razão da supressão de instância. Entretanto, é caso de concessão da ordem de ofício para anular o processo a partir do oferecimento da defesa prévia para, em seguida, de rigor reconhecer a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva, considerando-se a pena aplicada para cada delito e a impossibilidade de aplicação da pena superior na prolação de nova sentença. A denúncia foi recebida em 23/3/1999. A pena aplicada para cada delito foi de seis anos (arts. 213 e 214, ambos do CP), com lapso prescricional de 12 anos (art. 109, III, do CP), e tanto o paciente como o corréu eram menores de 21 anos à época dos fatos. Assim, o prazo prescricional deve ser contado pela metade (art. 115 do CP), tempo já decorrido da data do recebimento da denúncia e o julgamento do HC. Precedentes citados: HC 80.461-MS, DJe 21/9/2009, e HC 119.165-SP, DJe 3/8/2009. HC 135.445-PE, Rel. Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), julgado em 17/11/2009".


GOMES, Luiz Flávio. Vários réus, advogado comum e defesas conflitantes: nulidade. Disponível em http://www.lfg.com.br - 08 dezembro. 2009.v